DEVANEIOS NOTURNOS

 Certos acontecimentos  deixam marcas que carregamos para o resto de nossos dias e, de quando em quando, ressurgem, ainda que materializados nas mais diversas roupagens, no intuito de  impedir que nos esqueçamos deles. São como feridas que o tempo se encarrega de curar , transformando-as em cicatrizes, que jamais deixarão de estar presentes: seja no corpo, seja na alma. Esse mesmo tempo que contribui para a diminuição do sofrimento, também  dificulta, pelo decurso de sua passagem,  o discernimento  entre a realidade e a ficção, tamanho o entrelaçamento que uma tem com a outra na nossa imaginação.

             São exatamente três horas da madrugada.  O sono me abandona de tal forma que obrigo-me a sentar frente ao monitor do computador com o intuito de exorcizar alguns fantasmas que me rondam.

             Engana-se, entretanto, quem pensa que estes fantasmas seriam almas desencarnadas. São tão somente lembranças de fragmentos de uma distante infância que, mesclada de conteúdos oníricos, insistem em povoar minha mente.

             Ficção e realidade  misturam-se na minha retina em forma de imagens projetadas numa  grande tela de cinema. As imagens expostas, por mais que se tratem de absoluta ficção, possuem um caráter de realidade, porquanto as personagem ali encontradas são advindas da vida real, através dos mais variados momentos da minha trajetória. São, claramente, licenças poéticas de uma colcha de retalhos onde presente, passado e futuro se fundem em um único tempo.

             Recordo-me detalhadamente de uma imagem projetada nesta tela: a de um senhor espancando uma colega de trabalho, uma senhora sexagenária, diga-se de passagem de  personalidade forte,  muito à frente do seu tempo, com posições feministas muito contundentes, que estava sendo covardemente espancada, por um homem, também de mesma faixa etária, mas com um poder ofensivo muito maior do que o dita senhora devido ao seu porte físico avantajado. A imagem é nítida: há  troca de ofensas verbais seguidas de empurrões, socos e pontapés, sem que a senhora, embora estivesse em desvantagem, se acovardasse.. Há  um clima muito tenso no ar, muita gritaria entre os dois. Não é possível entender sobre o que discutem exatamente, mas tudo dá a entender que a senhora tenha iniciado a discussão. Tampouco é possível localizar o  lugar onde esta discussão se desenrola. De repente, no fogo da discussão verbal, o homem  empurra a senhora que cai e começa a apanhar de uma forma ainda mais indefesa.. Ela, que veste uma saia branca rodada, cujo cumprimento vai além dos joelhos, cai de maduro em razão do empurrão levado. Seguem as trocas de ofensas e a senhora continua apanhando, levando socos na cabeça e tentando, sem efeito, acertar o homem, dando socos e pontapés no ar. Mesmo sendo chamado  insistentemente de covarde, pela senhora, o agressor,  visivelmente transtornado e com um semblante transfigurado, segue golpeando a mulher que tenta, em vão, ficar de pé, enquanto continua sendo esmurrada.

             Subitamente, talvez como forma de evitar mal maior, acordo muito atordoada e percebo que tudo não passava de um pesadelo. Ao invés de ficar aliviada, surge  uma enorme angústia motivada pelo fato de reconhecer o rosto do agressor. Aquele senhor covarde não poderia ter um semblante  mais familiar. Era nada menos do que meu pai, dotado de uma fúria incontrolável, que agredira a minha colega, que nitidamente fazia às vezes da figura materna. Mesmo horrorizada com tamanha brutalidade, fico, por fim, menos tensa que tudo tenha acabado, ou ao menos a que a agressão tenha se interrompido através do meu despertar.

             Nada se compara ao poder das palavras em transformar a ficção em realidade ou a realidade em ficção. Se, por um lado fica dúvida de que tão covarde e minudente relato pertença efetivamente ao mundo real, de outro lado fica a certeza  inequívoca da  materialidade das palavras que tecem esta resenha, ganhando, desta forma, vida e dimensão próprias, extrapolando inclusive as intenções originais do autor.

             Enfim, o sono chega lentamente. Apago o computador, vou para a cozinha pegar um copo de  água gelada, que tomo vagarosamente, e me dirijo  para a cama aproveitando as poucas horas de sono que ainda me restam antes do amanhecer.