MIL-FOLHAS

Os alimentos, cujas cores, texturas, sabores e aromas  nos transportam para infinitas realidades: próprias ou  alheias, reais ou imaginárias, vão muito além de um  simples  veículo  de saciedade.

Tarde cinzenta e chuvosa de outono. Guarda-chuvas e sombrinhas, das mais diversas cores e tamanhos, dividem o espaço das estreitas calçadas ocupadas pelos apressados pedestres. A água que   verte das alturas, impiedosa e democrática, molha a todos que estão a céu aberto, sem qualquer distinção.

Observo estas cenas através da vidraça da cantina do colégio enquanto saboreio um singular mil-folhas: massa levemente aerada e crocante, cujas camadas são intercaladas por delicado recheio de creme de gemas, de textura aveludada e de sabor irresistível, tal qual um beijo roubado. Fecho levemente os olhos e me transporto à infância. Relembro de Carolina  a  melhor e mais bonita aluna da classe, dona de olhos azuis expressivos, de uma pele alva e cabelos louros cacheados, por quem houvera me apaixonado desde o primeiro encontro. 

Entretanto, toda a vez que queria dela me aproximar  sempre  havia alguém por perto. Um bom  tempo se passou, acredito que estivéssemos ambos com dez anos, até que finalmente encontrei-a sozinha. Como testemunha daquele momento somente o sol fulgurante de verão e as árvores, cujas copas nos ofereciam um pouco de sombra, já que sequer vento havia.  Estava no pátio,  sentada em um banco, próximo ao escorregador. Fiquei mirando-a sem que percebesse a minha presença. Fui me aproximando, passo à passo. Percebi que olhava para o nada, sem destino certo, um olhar introspectivo, talvez mergulhada em seus  pensamentos. Fui me aproximando mais e mais. Já estava tão próximo que conseguia  ouvir a sua respiração. Foi quando num impulso repentino, antes que pudesse notar a minha presença, roubei-lhe um beijo. Para a minha surpresa, ao invés de espanto, Carolina imprimiu  um lindo sorriso de aprovação, como se há muito esperasse por essa demonstração de carinho. Não houve troca de palavras, apenas uma singela e tímida troca de olhares. Meu olhar que se perdia  na imensidão daqueles olhos azuis e no sorriso que ainda permanecia em seu rosto foi bruscamente interrompido pelo soar do sino que nos fez regressar a realidade abandonada por alguns instantes.

A sineta toca novamente e me dou conta de que acabara o intervalo e que tenho que voltar a sala de aula. Finalizo o último pedaço do  mil-folhas e retorno ao meu ofício de professor. 

Lá fora, alheia a tudo e a todos,  a chuva persiste em cair incessantemente enquanto os alunos seguem a desenvolver as suas tarefas vespertinas.